Sou o último viajante – recordações do “Sud-Expresso”
Sim, sou o último viajante. Ou melhor: pertenço à última geração de viajantes. Os que se seguem a mim não viajam, são transportados. Partem de um ponto e chegam a outro, sem qualquer vontade de cederem à magia da viagem. O tempo gasto entre a partida e a chegada deve, para eles, ser o mínimo possível, o olhar inquisitorial para a paisagem na tentativa de adivinhar as lentas ou rápidas, óbvias ou subtis alterações do ordenamento do território ou da geografia humana são exames inúteis e sem interesse. A janela do comboio ou do automóvel não trazem qualquer apelo que possa superiorizar-se ao de uma contemplação do nada ou, melhor ainda, de um jogo de gameboy ou outro videojogo da moda. Quando muito a janela do avião pode merecer olhares esparsos, mas apenas para garantir a imutabilidade da vista – nem sequer a análise das formas caprichosas de cirros, estratos, cúmulos ou nimbos apresenta qualquer interesse. “Beam me up Scotty” – o transporte instantâneo – bem poderia ser o seu grito de guerra. A paisagem é sempre monótona, a viagem um inconveniente que se deve suportar para chegar ao ponto de chegada. Assim atravessam os meus filhos os vales da Lombardia, as paisagens dos Pirinéus, a Catalunha ou o “plat pays” que era o de Jacques Brel.
Mas não. Além do prazer da partida e da chegada a outros sítios, a viagem, em si, para os “últimos viajantes” é um valor, um prazer, a descoberta do lento evoluir do território e das suas gentes, a transformação do conhecido em desconhecido, a descoberta das diferenças. E as vistas e os sons criam uma geografia que não mais se esquece, que nos acompanha e tem tanta importância quanto o conhecimento que iremos adquirir do nosso destino. A viagem torna-se assim a lenta e agradável preparação para a chegada.
Para mim, por exemplo, a Espanha era o momento em que ouvia, na entrada da noite gritos de “oye Paco” a substituírem os anúncios por altifalante que me informavam que estava de passagem pela “estação de Vilar Formoso – o comboio estacionado na linha número um é o comboio “Sud-Expresso” com destino a Paris”, e o som da sineta inconfundível das estações de caminho de ferro espanholas (não por acaso comprei, aquando da celebração os 150 anos da ferrovia do “país irmão”, uma sua miniatura, que guardo religiosamente em casa,) acompanhava a minha travessia do território espanhol pela noite fora, pontuada de uma diversidade de apitos de locomotivas a vapor que me indicavam sem falhas o troço de via que estava a percorrer, ciência que a custo tinha conseguido, vencendo o sono e descobrindo, umas vezes através da janela da carruagem-cama mas outras vezes obrigando-me a sair para os gélidos cais das estações, qual o local onde estava, mesmo se obedecessem a nomes tão fora das toponímias conhecidas como são os de Medina del Campo, Miranda de Ebro, Alsasua e outros.
E se Portugal era um Tejo pouco interessante, a variedade que a Beira Alta oferecia era anunciada pela música das vendedeiras de água e arrufadas de Coimbra da estação “B” dessa cidade, onde o comboio parava, depois de igualmente ter prestado homenagem a Fátima, apelação oportunista de uma estação de Chão de Maçãs bem distante do local de peregrinação que anunciava. E se a nossa invariável presença na carruagem-restaurante nos fazia dispensar a compra das vitualhas anunciadas, a canção entoada por essas vendedeiras era uma “paisagem sonora” inesquecível (pena não poder incluir som nesta crónica, para transmitir essa toada que, quem sabe, será, em detrimento da que a religião me prescreve dizer no momento da morte, o meu último murmúrio – “ar’-fa-das deCuiim-bra e queijinhos de Alcobaaaaça” logo seguido de “Ágafr’quiiiinha!”). A Beira Alta eram as barragens, pontes e albufeiras, paisagens de rara beleza (com o comboio a passar quase pelo meio de povoações de casas de pedra) mas também um resto do trajecto numa Serra da Estrela que fazia invariavelmente o meu pai dizer que o nosso era um país árido e que era o prelúdio do jantar e, da entrada em Espanha, atravessada durante a noite e, logo, olhada da cama da carruagem-cama para onde nos recolhíamos. Era então a vez (em viagens mais tardias, com outras companhias que não a dos pais...) da emoção de uma lua cheia vista a dois pela janela ou, depois de se avistar o tempo de uma piscadela de olho o castelo iluminado de Ciudad Rodrigo, essencialmente, uma interminável linha telefónica que “subia” ou “descia” ao longo da janela do compartimento e acompanhava, poste a poste, a ferrovia, iluminada por uma intensa lua que difundia uma claridade que apenas algumas luzes esparsas – momentos mágicos – de casas isoladas interrompia por breves segundos (e cujo crescendo indicava inequivocamente a aproximação de uma cidade e de uma estação, que também a diminuição do ritmo do “dadang-dadang” dos rodados nos carris, anunciava ao reflectir sonoramente a diminuição da velocidade do comboio expresso). Do acordar, quando se tinha a rara ventura de abrir os olhos numa carruagem aquecida, cuja janela nos mostrava um Pais basco repleto de neve, nem vale a pena falar. Só quem conhece por já ter experimentado, por fazer parte do clube exclusivo dos “happy few” a quem já aconteceu fazer, em fundo de montanha coberta de neve, a travessia matinal de uma linha de montanha mas que também passa pelo bulício de uma zona com o que era então um grau de industrialização que motivava a animação dos cais repletos das estações de todos os subúrbios de Donostia, deixando entrever, apesar das velocidades modestas mas que naquele serpentear parecem vivas, aqui um riacho poluído, ali um túnel no qual se penetra com grande ruído, acolá nomes de ressonâncias mágicas de culturas longínquas como Zumarraga, Beasain, Ategorrieta, Hernani, Ikaztegieta, Legazpi, Renteria e tantas outras cuja pronúncia nos delicia, ou, infelizmente, nos vem à memória aquando de atentados de que são frequentes palco.
A entrada em França era o orgulho de viajar em comboio moderno, de carruagens prateadas, pronto a deslizar a velocidades desconhecidas na Ibéria e que faziam do “Sud-Expresso” o comboio mais rápido da Europa, logo a seguir ao ultra-famoso “Mistral” ( e mesmo primeiro em percursos de mais de 500 kms, “ex-aequo” apenas com outro nome mítico da ferrovia, o americano “Twentieth Century Limited”). A França era, também - temos que o confessar – a monotonia da floresta das “Landes” bordalesas. Mas era, antes de mais, o excelente pequeno almoço de que podíamos usufruir na carruagem-restaurante, e a minha mãe fazendo comparações impiedosas mas verdadeiras na altura entre a qualidade das frutas, dos doces e do pão franceses face aos seus congéneres ibéricos (continuou a fazê-las pela vida fora, mesmo quando já não correspondiam à verdade, provando que muitas vezes a memória dos sentidos é mais forte do que a realidade). Era ainda o re-encontro com os “croissants” (dos “croissants” nem se fala – ainda hoje poucos são os que em Portugal são feitos da massa leve dos franceses). E era por fim, depois da aridez da Serra da Estrela, o sentir da humidade da vegetação luxuriante da região basca francesa, que tinha porém dificuldade em esconder os “camping” da zona, inúmeros em França (turismo de massas oblige) mas ainda quase desconhecidos em Portugal.
Passadas as “Landes” o incessante olhar pela janela do comboio revelava estações que ocupavam imensidões, as suas linhas com material ferroviário moderno e variado oferecido ao olhar ávido do amigo dos caminhos de ferro (e mesmo, um tempo, a linha abandonada do “Aerotrain Bertin”, uma das falhadas aventuras mais interessantes do caminho de ferro), a incrível oportunidade de ver comboios a fazerem ultrapassagens a outros comboios e as sensações feéricas da aproximação a Paris, com os postos de agulheiros a pontuarem a chegada a “Paris Austerlitz”, indicando os kilómetros que faltavam e que ritmavam a preparação da saída para a cidade, com a descida das bagagens das bagageiras, a contagem destas e a procura ansiosa do “porteur”, chamado pela janela e que leva os “colis” ao táxi com o qual acabava a viagem.
Não, Scotty, do not beam me up. Deixa-me o prazer de me deslocar lentamente de um local a outro, absorvendo os sons, os sabores, as paisagens diversas. Que pena que eu seja o último viajante….
Mauricio Levy
Sim, sou o último viajante. Ou melhor: pertenço à última geração de viajantes. Os que se seguem a mim não viajam, são transportados. Partem de um ponto e chegam a outro, sem qualquer vontade de cederem à magia da viagem. O tempo gasto entre a partida e a chegada deve, para eles, ser o mínimo possível, o olhar inquisitorial para a paisagem na tentativa de adivinhar as lentas ou rápidas, óbvias ou subtis alterações do ordenamento do território ou da geografia humana são exames inúteis e sem interesse. A janela do comboio ou do automóvel não trazem qualquer apelo que possa superiorizar-se ao de uma contemplação do nada ou, melhor ainda, de um jogo de gameboy ou outro videojogo da moda. Quando muito a janela do avião pode merecer olhares esparsos, mas apenas para garantir a imutabilidade da vista – nem sequer a análise das formas caprichosas de cirros, estratos, cúmulos ou nimbos apresenta qualquer interesse. “Beam me up Scotty” – o transporte instantâneo – bem poderia ser o seu grito de guerra. A paisagem é sempre monótona, a viagem um inconveniente que se deve suportar para chegar ao ponto de chegada. Assim atravessam os meus filhos os vales da Lombardia, as paisagens dos Pirinéus, a Catalunha ou o “plat pays” que era o de Jacques Brel.
Mas não. Além do prazer da partida e da chegada a outros sítios, a viagem, em si, para os “últimos viajantes” é um valor, um prazer, a descoberta do lento evoluir do território e das suas gentes, a transformação do conhecido em desconhecido, a descoberta das diferenças. E as vistas e os sons criam uma geografia que não mais se esquece, que nos acompanha e tem tanta importância quanto o conhecimento que iremos adquirir do nosso destino. A viagem torna-se assim a lenta e agradável preparação para a chegada.
Para mim, por exemplo, a Espanha era o momento em que ouvia, na entrada da noite gritos de “oye Paco” a substituírem os anúncios por altifalante que me informavam que estava de passagem pela “estação de Vilar Formoso – o comboio estacionado na linha número um é o comboio “Sud-Expresso” com destino a Paris”, e o som da sineta inconfundível das estações de caminho de ferro espanholas (não por acaso comprei, aquando da celebração os 150 anos da ferrovia do “país irmão”, uma sua miniatura, que guardo religiosamente em casa,) acompanhava a minha travessia do território espanhol pela noite fora, pontuada de uma diversidade de apitos de locomotivas a vapor que me indicavam sem falhas o troço de via que estava a percorrer, ciência que a custo tinha conseguido, vencendo o sono e descobrindo, umas vezes através da janela da carruagem-cama mas outras vezes obrigando-me a sair para os gélidos cais das estações, qual o local onde estava, mesmo se obedecessem a nomes tão fora das toponímias conhecidas como são os de Medina del Campo, Miranda de Ebro, Alsasua e outros.
E se Portugal era um Tejo pouco interessante, a variedade que a Beira Alta oferecia era anunciada pela música das vendedeiras de água e arrufadas de Coimbra da estação “B” dessa cidade, onde o comboio parava, depois de igualmente ter prestado homenagem a Fátima, apelação oportunista de uma estação de Chão de Maçãs bem distante do local de peregrinação que anunciava. E se a nossa invariável presença na carruagem-restaurante nos fazia dispensar a compra das vitualhas anunciadas, a canção entoada por essas vendedeiras era uma “paisagem sonora” inesquecível (pena não poder incluir som nesta crónica, para transmitir essa toada que, quem sabe, será, em detrimento da que a religião me prescreve dizer no momento da morte, o meu último murmúrio – “ar’-fa-das deCuiim-bra e queijinhos de Alcobaaaaça” logo seguido de “Ágafr’quiiiinha!”). A Beira Alta eram as barragens, pontes e albufeiras, paisagens de rara beleza (com o comboio a passar quase pelo meio de povoações de casas de pedra) mas também um resto do trajecto numa Serra da Estrela que fazia invariavelmente o meu pai dizer que o nosso era um país árido e que era o prelúdio do jantar e, da entrada em Espanha, atravessada durante a noite e, logo, olhada da cama da carruagem-cama para onde nos recolhíamos. Era então a vez (em viagens mais tardias, com outras companhias que não a dos pais...) da emoção de uma lua cheia vista a dois pela janela ou, depois de se avistar o tempo de uma piscadela de olho o castelo iluminado de Ciudad Rodrigo, essencialmente, uma interminável linha telefónica que “subia” ou “descia” ao longo da janela do compartimento e acompanhava, poste a poste, a ferrovia, iluminada por uma intensa lua que difundia uma claridade que apenas algumas luzes esparsas – momentos mágicos – de casas isoladas interrompia por breves segundos (e cujo crescendo indicava inequivocamente a aproximação de uma cidade e de uma estação, que também a diminuição do ritmo do “dadang-dadang” dos rodados nos carris, anunciava ao reflectir sonoramente a diminuição da velocidade do comboio expresso). Do acordar, quando se tinha a rara ventura de abrir os olhos numa carruagem aquecida, cuja janela nos mostrava um Pais basco repleto de neve, nem vale a pena falar. Só quem conhece por já ter experimentado, por fazer parte do clube exclusivo dos “happy few” a quem já aconteceu fazer, em fundo de montanha coberta de neve, a travessia matinal de uma linha de montanha mas que também passa pelo bulício de uma zona com o que era então um grau de industrialização que motivava a animação dos cais repletos das estações de todos os subúrbios de Donostia, deixando entrever, apesar das velocidades modestas mas que naquele serpentear parecem vivas, aqui um riacho poluído, ali um túnel no qual se penetra com grande ruído, acolá nomes de ressonâncias mágicas de culturas longínquas como Zumarraga, Beasain, Ategorrieta, Hernani, Ikaztegieta, Legazpi, Renteria e tantas outras cuja pronúncia nos delicia, ou, infelizmente, nos vem à memória aquando de atentados de que são frequentes palco.
A entrada em França era o orgulho de viajar em comboio moderno, de carruagens prateadas, pronto a deslizar a velocidades desconhecidas na Ibéria e que faziam do “Sud-Expresso” o comboio mais rápido da Europa, logo a seguir ao ultra-famoso “Mistral” ( e mesmo primeiro em percursos de mais de 500 kms, “ex-aequo” apenas com outro nome mítico da ferrovia, o americano “Twentieth Century Limited”). A França era, também - temos que o confessar – a monotonia da floresta das “Landes” bordalesas. Mas era, antes de mais, o excelente pequeno almoço de que podíamos usufruir na carruagem-restaurante, e a minha mãe fazendo comparações impiedosas mas verdadeiras na altura entre a qualidade das frutas, dos doces e do pão franceses face aos seus congéneres ibéricos (continuou a fazê-las pela vida fora, mesmo quando já não correspondiam à verdade, provando que muitas vezes a memória dos sentidos é mais forte do que a realidade). Era ainda o re-encontro com os “croissants” (dos “croissants” nem se fala – ainda hoje poucos são os que em Portugal são feitos da massa leve dos franceses). E era por fim, depois da aridez da Serra da Estrela, o sentir da humidade da vegetação luxuriante da região basca francesa, que tinha porém dificuldade em esconder os “camping” da zona, inúmeros em França (turismo de massas oblige) mas ainda quase desconhecidos em Portugal.
Passadas as “Landes” o incessante olhar pela janela do comboio revelava estações que ocupavam imensidões, as suas linhas com material ferroviário moderno e variado oferecido ao olhar ávido do amigo dos caminhos de ferro (e mesmo, um tempo, a linha abandonada do “Aerotrain Bertin”, uma das falhadas aventuras mais interessantes do caminho de ferro), a incrível oportunidade de ver comboios a fazerem ultrapassagens a outros comboios e as sensações feéricas da aproximação a Paris, com os postos de agulheiros a pontuarem a chegada a “Paris Austerlitz”, indicando os kilómetros que faltavam e que ritmavam a preparação da saída para a cidade, com a descida das bagagens das bagageiras, a contagem destas e a procura ansiosa do “porteur”, chamado pela janela e que leva os “colis” ao táxi com o qual acabava a viagem.
Não, Scotty, do not beam me up. Deixa-me o prazer de me deslocar lentamente de um local a outro, absorvendo os sons, os sabores, as paisagens diversas. Que pena que eu seja o último viajante….
Mauricio Levy
e eu a primeira. na viagem. do para sempre.
ResponderEliminarbom dia I.
contigo.
beijo.
(piano)
è sempre bom "viajar neste teu caderno
ResponderEliminarem trânsito
ResponderEliminar(estamos/somos)
(...)
beijo
:)
Uma óptima leitura que nso ofereces para terminar este Domingo.
ResponderEliminarEle não é o último viajante, apenas pensa que o é ... eu já embarquei
Beijos Isabel.
Uma óptima leitura que nso ofereces para terminar este Domingo.
ResponderEliminarEle não é o último viajante, apenas pensa que o é ... eu já embarquei
Beijos Isabel.
a viagem do sentido único que nunca o é epor não ser será o tudo do que não é nada.
ResponderEliminaracho que isto não quer dizer nada. é só uma viagem pela palavra.
beijo Isabel!
B.
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quando digo "isto não quer dizer nada" refiro-me ao que escrevi.
ResponderEliminar:)))
beijo Isabel.
B.
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...ocupei esses lugares...entre cheiros e sombras errantes...tanta vez
ResponderEliminarum abraço
nunca o mauricio pensou que este texto viajasse tanto na net
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