quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Esta é a ideia de museu que não queremos ! Os " museus " feitos contra as pessoas não são museus ! São gaiolas douradas ...

Candidatura da Cidade Velha a património da humanidade
________________________________________________________

"As Pessoas não Vivem em Museus "


Siza Vieira apresentou ontem plano de salvaguarda da Cidade Velha, em Cabo Verde

(Da nossa enviada Lucinda Canelas, na Cidade Velha )

Siza Vieira e Rosalinda estão de acordo. O arquitecto, que ontem apresentou o plano de salvação da Cidade Velha, em Cabo Verde não quer que a cidade congele. Rosalinda, uma habitante daquela que foi a primeira capital do arquipélago, diz que as pessoas não podem viver em museus. A maior preocupação do arquitecto é assim criar um novo traçado para as famílias que querem aí ficar mas são já demasiado grandes para ocupar as pequenas casas.
No final da Rua da Banana, junto a uma acácia e a um campanário improvisado, fica a Igreja da Nossa Senhora do Rosário. À porta, de lenço azul e sorriso pronto, estava Rosalinda, uma cabo-verdiana de 61 anos, boa parte dos quais dedicados à conservação da velha igreja. Ontem, o dia era diferente - "de gente muito importante" -, mas a voz que desfiou, vezes sem conta, o rol de histórias que marcam a vida do santuário era a mesma. Sentada num dos bancos da igreja, espreitava, curiosa, as plantas que Álvaro Siza Vieira estendeu no chão ao apresentar o plano de salvação da Cidade Velha, no âmbito da visita de Manuel Maria Carrilho, ministro da Cultura, a Cabo Verde.
Responsável pelo projecto, Siza Vieira realizou a primeira visita ao arquipélago há um ano e confessou-se "preocupado" com a tarefa. "A grande dificuldade que aqui se levanta é gerir a tensão que existe entre o desejo de construir mais casas e a necessidade de preservar. Temos de encontrar uma via entre os dois pólos extremos - o desaparecimento das marcas e o museu, fugindo a um meio termo medíocre."
Um museu é definitivamente o que não querem. Nem Siza Vieira, nem Rosalinda. "Não sei se era capaz de viver noutro lado - as pessoas não vivem em museus e eu não vivo longe daqui afirmou ao PÚBLICO Rosalinda, ou melhor, Linda, já que é assim que todos lhe chamam, à excepção dos 11 filhos porque "as mães só têm um nome, mãe".
De olhos postos na comitiva que se sentou à sua volta, Linda falou da Senhora do Rosário como quem fala do seu bem mais precioso. A memória afinada fez desfilar uma série de nomes, datas e estilos arquitectónicos. Todos aprendidos com um padre e com os livros. Apesar de dizer que não sabe falar porque a escola é fraca", explicou, nos seus detalhes, como nasceu e cresceu a igreja onde casou, num dia de "muita gente, muita alegria e muito batuque".
Contou como D. João II morreu antes de ver Cabo Verde, descoberto em Maio de 1460, como D. Manuel mandou construir a igreja e rezar missa todos os sábados em honra do seu antecessor, como o Padre António Vieira baptizou ali os escravos com a ajuda de dois frades franciscanos.
Para salvar os azulejos que "um arquitecto ultramarino" mandou deitar fora no final da década de 60, retirou-os da igreja e enterrou-os no chão da casa onde vivia, uma casa que hoje não passa de ruínas, pedindo a Siza Vieira que a voltasse a pôr de pé: "Esta era a minha casa. Tem mais de 100 anos. Foi aqui que guardei os cacos. Gostava muito de vir para cá morar outra vez. Pode ser?"
Depois de anos de promessas por cumprir, Rosalinda acredita que agora as coisas vão mesmo mudar. "Está cá o Siza Vieira. Todo o mundo fala do Siza, até já eu aprendi a falar dele e falo a toda a hora."
Procurando manter "o extraordinário equilíbrio secular entre natureza e construção", o projecto de Siza Vieira foi traçado segundo dois objectivos fundamentais: regenerar ou melhorar o sulco da ribeira - na foz da qual se estabeleceu o tecido urbano - e definir um princípio para o aumento do tamanho das casas. "É preciso criar um novo traçado para as famílias que querem cá ficar mas são já muito grandes para ocupar estas pequenas casas. Tudo sem abandonar esta maneira de viver. Sem deixar de ver miúdos a brincarem livres pela praia e pelas ruas, pessoas a cozinharem nos quintais. A relação com a natureza é o segredo do carácter da Cidade Velha."
Consciente de que a tarefa pode parecer impossível e até "reaccionária", Siza Vieira defende que "à arquitectura moderna é indispensável o convívio com a arquitectura passada", mantendo presente a ideia de um projecto em que a tecnologia seja entendida numa lógica de continuidade e não de ruptura ou imposição.
Afirmando que "a transformação em curso na cidade não acaba", preferiu não avançar datas para conclusão do projecto. Para já, a única certeza é de que trabalhará um ano sobre o plano, traçando "possíveis opções de futuro para a cidade" com uma equipa de que farão parte sociólogos, arquitectos, arqueólogos e engenheiros agrónomos, tendo em conta rigorosas consultas às necessidades da população local.
"Quero trabalhar com gente de Cabo Verde. Montar um gabinete local bem estruturado que possa acompanhar a construção."
Acompanhar a construção é para António Jorge Delgado, ministro da Cultura de Cabo Verde, um aspecto essencial. Os trabalhos de conservação e restauro da fortaleza real de S. Filipe estãojá a decorrer e têm merecido especial atenção. Financiada pelo governo espanhol - ou não tivesse a construção terminado em 1587, durante o domínio filipino - a reabilitação arquitectónica do forte está estruturada em duas fases, a primeira das quais a inaugurar em Setembro, praticamente terminada. A segunda, avaliada em 300 mil contos, que inclui a continuação dos trabalhos de prospecção arqueológica e a reconstrução dos armazéns de pólvora e munições, não tem ainda conclusão prevista, embora esteja praticamente certa a futura utilização do forte como centro cultural.
Os financiamentos portugueses, por seu lado, destinam-se à Sé, o mais importante monumento da Cidade Velha. A sua construção teve início em 1555, mas só foi terminada em 1697, quando a Praia já era a cidade mais importante do arquipélago, e o declínio da Ribeira Grande já se anunciava apesar de ser ainda a capital. O Instituto Português do Património Arquitectónico tem a seu cargo os trabalhos, que deverão arrancar em Outubro embora as obras de conservação só comecem em Março.
Os custos totais do plano de salvaguarda não são conhecidos, embora o financiamento esteja, segundo António Jorge Delgado, assegurado, graças aos governos de Portugal e Espanha e a um grupo alemão privado que prometeu investir, "sem contrapartidas", 150 mil contos por ano, durante uma década.
Alheios às preocupações que a cooperação cultural exige, Kaluzinho, Egídio, Amiltion e Ireia brincavam alegremente no largo do pelourinho, enquanto, à sombra de uma árvore, um grupo de homens jogava oril e os rapazes acartavam à cabeça pesadas trouxas de roupa, ladeira acima a caminho do tanque do Forte de S. Filipe. As palavras de Siza Vieira voltam à memória, tornando-se fácil perceber porque diz - "quero guardar esta vida".
© 1999 PÚBLICO

Sem comentários:

Enviar um comentário

Seguidores

Povo que canta não pode morrer...

Arquivo do blogue

Pesquisar neste blogue