quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Exposição. Brevemente no Museu do Trabalho ...



Varinos, nós ?
Como musealizar um sentimento ...


“O objecto só tem existência no gesto que o torna tecnicamente eficaz”
( A . Leroi – Gourhan)


Mas então, que objectos são esses que nos propomos apresentar nesta exposição ? Que gestos ou, mais precisamente, que gestualidades, os tornam significativos ? Que subtilezas lhes conferem emoção ? Como musealizar um sentimento ... eis a questão.
O desafio era gerar novos conhecimentos e suscitar inquietação relativamente a uma categoria identitária – os varinos, em Setúbal, aparentemente cristalizada num beco histórico. Ora, tendo como lastro o aturado trabalho de campo realizado por Marta Ferreira e Ricardo Lousa, finalistas de Antropologia da Universidade Nova de Lisboa, em estágio académico no Museu do Trabalho Michel Giacometti, procurámos transpor para uma linguagem museográfica , um dos aspectos mais marcantes deste estudo. A identificação de “ um sentimento varino “, algo difuso, de difícil definição, desgastado pelo tempo, de que nos falam algumas pessoas, de várias gerações, ligados a famílias de origem murtoseira que migraram para Setúbal desde meados do século XIX, em demanda de trabalho nas pescas e nas conservas de peixe.
A identificação desta identidade, tantas vezes patenteada como um pitoresco “ bilhete-postal” carece de redefinição. Carece de perguntas para as quais raramente encontramos respostas nas palavras ditas. Hoje, quando perguntamos aos nossos informantes, o que é e como se distingue um varino , reportam-se a coordenadas de espaço/tempo – alguém que habita algures entre as Fontaínhas e o Bairro Santos Nicolau, que tem ascendentes na Murtosa e que vivia de certa maneira, segundo certos princípios ... hoje, muito difíceis de identificar e quase impossíveis de materializar expograficamente..
A questão está em que os tempos mudaram e a ideia idealizada do pescador “bilhete postal” de camisa de xadrez e boné também se alterou. Assim sendo, urge questionar que auto-representação têm os mais jovens desta suposta identidade varina, que imagem têm os setubalenses, em geral, do tão aclamado pescador de Setúbal .
Pergunta-se mesmo à laia de provocação – constituiria motivo de interesse etnográfico, pretexto fotográfico, bandeira turística ou tema patrimonial, um jovem pescador que de manhã navega no rio e à tarde na internet ? Alguém aparentemente indistinto, que usa calças “ Lois”, polos “ Lacoste “ e óculos “ Ray Ban ” cabe no nosso imaginário de pescador ?
Em que cartografia da memória se inscreve este homem? Em que paisagem humana o fantasiamos ? Que futuro lhe vaticinamos ? E ele, como se sentirá neste tempo ambíguo ?
Esta personagem, paradigma de muitas outras, não é uma ficção, tem uma existência real na comunidade marítima local, sintetizada na história de vida do elo mais jovem de uma das cinco famílias de varinos por nós estudadas.
Por imposição dos tempos, por mimetismo social, em resposta a novas necessidades e funcionalidades da vida moderna, este pescador de novo tipo, cortou as amarras com os estereótipos, perdeu definitivamente os sinais exteriores de exotismo, ditados pelo vestir, pelo falar e pelo estar. Habita hoje outro espaço na cidade, portanto é dentro de si próprio que temos que ir descobrir o tal “ sentimento varino “que vem à baila, quando nos fala da infância no Bairro Santos, dos magotes de rapazes que percorriam a pé a cidade, dos tempos passados com o pai na pesca, da ritualização dos costumes, do bater das cartas nas tabernas. É alguém que se sente filho do mundo contemporâneo, membro da comunidade global, mas ciente e seguro de uma origem determinada que o engrandece e ancora a um passado marcante. Falou-nos do alto dos seus trinta e cinco anos de idade, da enorme vontade de deixar tudo (actualmente é mestre de rebocadores), e seguir as pegadas do pai, investir na velha embarcação da família, uma barca chamada “ Alice dos Santos “ (nome da avó), vezeira nas Festas da Troia e zarpar, mar dentro, a capturar chocos, lulas, linguados, etc., seguindo a tradição da família, sem abdicar da companhia do moderno pc portátil que o atira para as velozes ondas do mundo, quando as águas do rio estão mais paradas e o peixe teima em não aparecer.
Assim, voltando à questão como musealizar um sentimento, neste caso “um sentimento varino “, optámos por pedir a cada família que escolhesse um objecto significativo da herança varina, com o intuito de apresentar cinco objectos com “ estória “, de significante memória. Surgiu um problema – homens e mulheres não convergem nessa escolha. Então mudámos as regras e combinámos expor dois objectos por cada família, um escolhido pelos homens e outro pelas mulheres. Também cada família retirou do álbum as fotografias mais significativas para expormos no museu. Tudo será legendado com a participação dos nossos interlocutores e na sua forma de contar. Mas alguns, sobretudo os mais velhos, não sabem ler ... assim filmámos, para acesso visual, o que nos disseram sobre os respectivos objectos, as significações e gestualidades associadas. Então, foi muito interessante descobrirmos o que, nem sempre, as palavras explicam. A exemplificação gestual do uso de um simples xaile preto de merino, com franjas de seda, guardado há cerca de noventa anos, no seio de uma das mais antigas famílias, mostra-nos que este assume distintas formas de se fazer ao corpo, consoante a ocasião e a disposição. Uma linguagem simbólica subtil, provavelmente um traço da identidade varina (a confirmar em estudos comparados), reconhecido entre as mulheres da comunidade, passado de geração em geração, num vendo/fazendo quase mudo, que se vai entranhando. Uma memória singular, sedimentada nos gestos : - “o xaile para o dia-a-dia”, caído pelo corpo sem artifícios ; “o xaile para festa”, alegre, descaído sobre os ombros ; “o xaile para a missa” e o “xaile para sentimento “ que, em sinal de respeito ou de luto, tapa a cabeça e aconchega a dor.

Os objectos nesta exposição apresentam-se como que fragmentos de um "relicário"de família, mote para desfiar “ estórias “, âncoras de memórias, contornos de um “sentimento varino “ que talvez um dia venhamos a compreender.
Por essa mesma razão começámos este texto com um ponto de interrogação - Varinos, nós ? Pois assim se interrogam os mais jovens, surpreendidos com a persistência deste epíteto, tão longe vai o tempo da varinagem ; acabamos com reticências ... em sinal de continuação.

Isabel victor, Museu do Trabalho Michel Giacometti

in catálogo exposição " Varinos, nós ? "




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Apareçam ! Próximo Sábado, dia 29, ás 15-00h
Museu do Trabalho Michel Giacometti

RPM - Museu do Trabalho Michel Giacometti

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Ainda a propósito de comunidades marítimas do litoral português, culturas, identidades e representações sociais, achei muito interessante este estudo O TRABALHO FAZ-SE ESPECTÁCULO: A PESCA, OS BANHOS E AS MODALIDADES ...

9 comentários:

  1. beijo. tardio. mas sempre presente.


    :))___________________


    y.

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  2. Vou tentar ir...

    Isabel, com um texto destes, convenceste-me.

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  3. (musealizar um sentimento...
    e uma identidade? um "ser/sentir"?

    árduo e facinante, a tarefa dos museus,,, vivos)

    beijo

    p.s.
    denso post, excelente...

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  4. Pescadores houve.
    Pescadores há?

    Os de antigamente bebiam vinho e aguardente, fumavam "mata-ratos", camisas aos quadrados, barrete negro na cabeça, descalços, rostos enrugados pelo sol, vidas duras de fome, miséria e risco.
    Pescadores houve.

    Os de agora bebem "shots", fumam Marlboro, vestem marcas, rapam o cabelo, bronzeiam-se na praia, e vão ao mar...quando lhes apetece.
    Pescadores há?

    Como compreendo a dificuldade de recriar os tempos de outrora.
    Repare que não sou saudosista, ainda bem que tudo evoluiu. Mas descaracterizou-se.

    Só mesmo em museu.

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  5. um abraço sempre agradecido pela partilha e convite...

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  6. Sem dúvida uma tarefa difícil, a de musealizar "o sentimento".
    Parabéns pela iniciativa!
    Beijinhos

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  7. Sim, uma tarefa difícil…senão mesmo impossível. O sentimento é algo vivo, que somente na intimidade do no nosso ser podemos partilhar com os outros.

    Não há abstracções ou discursos que façam valorizar o que nos é alheio. O valor intrínseco que se dá a um objecto está fora do alcance dos princípios da museologia.

    Jamais podemos sentir com a intensidade do outro, do que o outro amou ou odiou. Esse “sentimento” pode-se intuir apenas pelas nossas experiências de vida…

    O que eu amo e como amo não é uma peça de museu.

    (Se falei de amor, foi porque de todos os sentimentos, este é o mais vulgar)

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  8. Obrigado pelo convite, mesmo não podendo ir (com grande pena minha).
    Espero que coloque mais novidades sobre o tema no seu blogue.

    cumprimentos

    Sertorius

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  9. Afinal não posso ir (a família quer outro programa...) ao teu museu.

    Mas guarda-me um catálogo. Vou ver se consigo dar uma saltada a Setúbal, um dia destes.

    Abraço

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