Já no século XVII o Padre Antônio Vieira afirmava que “o Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África”, reconhecendo a importância de um legado negro que tem papel de matriz formadora da cultura brasileira. Por isso o Museu Afro Brasil não pretende ser um museu do negro ou sobre o negro, museu de um gueto étnico ou cultural, nem tampouco um museu do folclore, reduzindo a “curiosidades do passado” as raízes mais profundas das expressões da cultura brasileira. Ao contrário, o museu se propõe a re-visitar nossa história, passar a limpo nossa memória, para interrogar-nos sobre a formação de nossa sociedade e nossa cultura, fazendo-o, porém, da perspectiva do negro, a partir do olhar e da experiência do próprio negro. Não reconhecer ao negro o direito a esse lugar, negar a importância de sua contribuição, que perpassa todas as manifestações culturais do Brasil, seria passar um mata-borrão sobre uma saga de mais de cinco séculos de história e de dez milhões de africanos triturados na construção deste país.
Sendo um museu brasileiro, o Museu Afro Brasil não pode deixar de ser também um museu da diáspora africana, pois a presença do negro, no Brasil e nas Américas, é indissociável da experiência de desenraizamento de milhões de seres humanos arrancados aos seus lugares de origem graças à instituição da escravidão. É a escravidão que, na diáspora, força o contato e o intercâmbio entre membros de diferentes nações africanas e produz as mais diversas formas de assimilação entre suas culturas e as de seus senhores, bem como de resistência à dominação que estas lhes impõem. O Museu Afro Brasil é um museu da diáspora e, como tal, deverá registrar não só o que de africano ainda existe entre nós, mas o que foi aqui apreendido, caldeado e transformado pelas mãos e pela alma do negro, a miscigenação e a mestiçagem que contribuíram para a originalidade de nossa brasilidade.
Todavia, a cultura mestiça que se forma na diáspora envolve relações entre desiguais, em se tratando de senhores e escravos. É o trabalho escravo que, primeiro graças ao índio, o negro-da-terra, e depois ao negro africano, constrói a sociedade na qual se forma uma cultura e uma civilização. Do eito à casa grande, da lavoura da cana de açúcar ao cultivo do café, da mineração do ouro à extração de diamantes, o escravo produziu os ciclos de riqueza que durante séculos garantiram a grandeza da sociedade escravocrata, sem ter nem ao menos o reconhecimento de sua dignidade humana, e recebendo em troca do sacrifício a indiferença e o abandono a que foram relegados seus descendentes após o fim da escravidão. Índios, negros e brancos foram postos em confronto nesse processo. Eis as matrizes de nossa formação, mas que dela participam em condições desiguais, não pelo seu valor, mas pela crua brutalidade do domínio, sob o peso da escravidão. Não é possível pensar a herança negra e afro-ameríndia na formação da sociedade e da cultura brasileiras sem passar pelo genocídio e o etnocídio que dela fazem parte, o verdadeiro holocausto representado pela diáspora africana na América e o abismo das desigualdades sociais que se constituiu e cristalizou nesse processo.
No entanto, não se apagam memórias e não se eliminam culturas senão ao preço da destruição física daqueles que são seus portadores, pois a cultura é o que permite ao homem compreender sua experiência do mundo e conferir sentido à sua existência. Ainda que em fragmentos, nos interstícios da cultura do senhor, a cultura do escravo resiste e persiste, em processos de trocas, fusões e re-significações que ocorrem numa via de duas mãos. Este é o princípio da mestiçagem que faz reconhecer traços das culturas negras africanas ou afro-brasileiras como características da identidade nacional, ao mesmo tempo em que as heranças negras mestiças presentes na cultura popular são vistas apenas como folclore. Não é por acaso que os negros que alcançam alguma posição de destaque na sociedade nacional “deixam de ser” negros, no conhecido fenômeno do embranquecimento.
Importa, pois, reconhecer como negras as raízes de sua (nossa) cultura e como negro quem negro foi e quem negro é. E importa evidenciar toda a carga de preconceito e discriminação e desigualdade social que o negro carrega sobre os ombros, pesada herança da escravidão. Importa, por fim, reafirmar a força de resistência que o negro não se cansou de demonstrar em 500 anos de nossa história, não só pelo simples fato de sobreviver e produzir, mas por nos legar como herança sua criação intelectual, moral, religiosa, estética e artística. O Museu Afro Brasil não pode ser um museu meramente contemplativo, já que tem o compromisso social de contribuir para resgatar a dívida da sociedade brasileira para com o segmento negro e mestiço da sua população e de fazer reconhecer sua dignidade, o valor de sua cultura e o lugar que de direito lhe cabe na sociedade brasileira.
O Museu Afro Brasil será, assim, um museu histórico que fale das origens, mas também registre as lutas que prosseguem ainda hoje. Um centro de referência da memória negra, que reverencie a tradição que os mais velhos dolorosamente souberam guardar, mas faça reconhecer os negros ilustres, na vida pública, nas ciências, nas letras e nas artes, no campo erudito ou popular. Um museu etnográfico que exponha com rigor e poesia ritos e costumes que traduzem outras visões de mundo e da história, festas que evidenciam o encontro e a fusão de culturas africanas e luso-afro-ameríndias para formar a cultura mestiça do Novo Mundo, mas que também registre a dinâmica da cultura negra na diáspora hoje. Um museu de arte, passada e presente, que reconheça o valor da recriação popular da tradição e reafirme enquanto negro o talento de formação erudita, nas artes plásticas e nas artes cênicas, na música como na dança.
Mas, sobretudo, o Museu Afro Brasil quer ser um museu contemporâneo, em que o negro possa se reconhecer hoje. Um museu que integre os anseios do negro jovem e pobre ao seu programa museológico, contribuindo para sua formação educacional e artística e sua qualificação profissional, mas também para a formação intelectual e moral de negros e brancos, cidadãos brasileiros, em benefício das gerações que virão. Um museu que participe da construção de um país mais justo e democrático, igualitário do ponto de vista social, aberto à pluralidade e ao reconhecimento da diversidade no plano cultural, mas que também reate os laços com a diáspora negra, promovendo trocas entre a tradição, a herança local e a inovação global.
Texto de Emanoel Araujo
http://www.museuafrobrasil.com.br/apresentacao.asp
Texto de Emanoel Araujo
http://www.museuafrobrasil.com.br/apresentacao.asp
Cara Isabel Victor:
ResponderEliminarEstive para comentar o seu post, mais acima, sobre o Michel Giacometti e como seria justíssima essa homenagem. No meu blog Raízes e Antenas tenha várias referências ao trabalho de Giacometti, exemplo maior de amor pela nossa cultura (e não só a música, embora a música seja a fatia maior...) da parte, e isto é admirável, de um «estrangeiro» (e ponho estrangeiro entre aspas porque Giacometti acabou por ser mais «português» do que corso e mais «português» do que muitos portugueses...). E, pronto, espalhei-me no comentário errado...
Acerca deste: no Peru, a maravilhosa cantora Susana Baca dirige um museu integrado no seu Instituto Negro Continuum que estuda e explica as relações entre África e a cultura afro-peruana, através da história da escravatura na América Latina (e noutras paragens: Susana Baca esteve em África e nos Estados Unidos, nomeadamente em Nova Orleães e em Chicago, a estudar essas ligações).
Obrigado por tudo quanto ensina nos seus posts...