Fotografia, João Victor, Ilhavo, Anos 60
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Saudade é ... olhar para o fundo do poço, sentir o frio na cara, procurar-se no reflexo nas águas e deixar-se embalar no eco.
Estava a pensar em saudades ... e ocorreu-me esta imagem da minha infância que tanto me fazia sonhar ... olhar para o fundo do poço, debruçar-me, desafiando o perigo, desobedecendo a avisos e ralhetes de pais e avós.
Não fui menina de “ infantário “ . Cresci em liberdade, numa pequena quinta, perto de Ílhavo. Mesmo em frente à janela do meu quarto, tinha um imponente moinho de vento que rugia, em dias de ventania, numa toada metálica que fazia sonhar ... à noite metia medo ... mas a minha vontade era sempre subir até lá acima ...
Ficava por ali com o meu irmão, sob o olhar da minha avó Amélia e das pessoas que lá trabalhavam. Os dias pareciam enormes ... havia sempre tanto para ver e fazer ... descobrir como é que as toupeiras desviavam a água das caleiras de rega, porque é que os rabos das lagartixas continuavam a mexer depois de cortados, imaginar como seriam as doninhas que, à noite, atacavam o galinheiro e reduziam tudo a um festival de penas. Colher os agriões que nasciam numa vala de água corrente ao fundo da quinta (esses agriões picavam na língua ... nunca mais os encontrei.! ), ver as formas engraçadas que tomavam as abóboras para se ajeitarem à terra e ao sol. Conhecer as boas arvores de fruto (que nem sempre eram as mais bonitas). A ameixeira grande junto ao poço, a nogueira, as laranjeiras tais e tais e a velha figueira. O deslumbramento de comer figos (pingo de mel) mesmo por debaixo da figueira ... um aroma, doce ... que me faz , ainda hoje, ter uma espécie de culto gustativo por figueiras e figos. Não sabia o que eram pizzas, salsichas e yogurtes, esta espécie só muito mais tarde a descobri e nunca aderi. Aos Domingos reunia-se a família, vinham os outros avós, faziam-se
assados no forno de lenha e havia sempre canja (talvez por isso, hoje não sou muito apreciadora desta sopa ...).
As roupas eram feitas pela Mindinha, uma costureira, mulher de um bacalhoeiro embarcadiço, que ia a casa transformar calças em vestidos, camisas em calções e outros remedeios. Não me lembro de andar às compras. Salvo as idas à mercearia do Sr. José Branco, com a minha avó, onde ela ficava algum tempo, a falar da vida e me ia ensinando a fazer contas. Essa mercearia tinha, empilhadas em pirâmide, à entrada, barricas da sardinha amarela que iam, lá para fora, para o soldados do Ultramar (era assim que me explicavam o sentido deste aglomerado escultórico, tão exótico aos olhos de uma criança ... )
Aos seis anos comecei a ouvir falar em ir para a escola ... sentia curiosidade e inquietação ... ficava pendurada na janela a ver os miúdos a passar e pensava ... de que é que eles falam ? Quando eu for, assim, para a escola vou falar de quê, com eles ? Mas depois, fui para a escola e gostei ... mesmo com uma professora que, na primeira classe, dava réguadas que até ferviam nas mãos (tudo muito pedagógico!), entusiasmava-me a aventura de sair sozinha e de aprender coisas novas. Tinha um certo orgulho nos cadernos, na minha bata branca. O pior eram os cabelos, diariamente entrançados pela minha mãe, entre súplicas e arrepelos. Mas rapidamente me habituei ... comecei a querer mais ...
O meu pai fazia teatro amador e sempre se interessou muito por novidades musicais e literárias. Tinha em casa um sítio muito especial que eu disputava - o escritório. Prerrogativas de género ... nesse tempo, nesse meio, existia uma profunda diferenciação entre mundos de homens e mulheres, mundos de adultos e crianças ... só me restava ir ao escritório às escondidas, vasculhar tudo com imenso cuidado e não deixar rasto. Um dia correu mal ... entusiasmei-me com uns fascículos soltos de "As Maravilhas Artísticas do Mundo" (os quadros pareciam mesmo verdadeiros ... até estavam protegidos com papel de seda. Eram mesmo irresistíveis ! ), deixei tudo baralhado e à noite houve serão e missa cantada ... fiquei proibida de voltar ao escritório ! Se quisesse continuar a ler tinha que apelar à conivência da minha mãe ...
Enfim, a estória já vai longa ... e eu continuei sempre a assaltar “ escritórios “ de forma transgressora !
iv.
quarta-feira, 17 de janeiro de 2007
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