Fotografia de João Castela CravoOs museus conservam (?)Un article paru dans le numéro 32 (Agosto-Setembro 2004) de
Ecomuseu Informação, Boletim Trimestral do Ecomuseu Municipal do Seixal.
Nous le remercions de l'autorisation de reproduire
ce texte.
interactions-onlineIl traite de cette question fascinante, qui n'apparaît que rarement dans les manuels ou les traités de muséologie: pourquoi conserver ?
Para que o leitor não crie falsas expectativas face a um título que parece provocatório (ou, simplesmente, “non-sense”) e possa decidir passar à página seguinte, dizemos-lhe já ser reduzida a nossa sabedoria e pouquíssima a apetência para debates teóricos – a acção, informada, consciente e responsável tem matéria que baste à nossa capacidade de reflexão, pelo que os deixamos àqueles que sabem duplamente fazê-lo: porque detêm um profundo conhecimento e sabem comunicá-lo, como é o caso do Professor e Engenheiro Luis Elias Casanovas, de quem aconselhamos vivamente a leitura do artigo “Conservar ou “des-Conservar”, publicado no Boletim da Rede Portuguesa de Museus (Set. 2003, 9: 9-11).
Vem este preâmbulo a propósito de duas ideias, certamente incompreensíveis para o comum dos mortais, isto é, para as pessoas e comunidades onde, com quem, de quem e para quem vivem (é mesmo este o verbo) os museus e os que neles trabalham. Contudo, ao que vamos ouvindo e lendo, este par de ideias é cientificamente estimulante para intelectuais e/ou cientistas que almejam mudanças de paradigma – “os museus não precisam de objectos”, dizem alguns; “os objectos não precisam dos museus”, dizem outros!
Não procuraremos comentar nenhuma delas em particular, mas algo de comum a ambas: o esvaziamento ou mesmo desaparecimento da conservação enquanto função museal, entendendo que ela se dirige aos “objectos”, no sentido lato de “bens materiais”, e que, mais do que destino, é da natureza destes o desaparecerem, serem destruídos, morrerem.
No entanto, tudo parecerá menos simples se pensarmos nos objectos não como realidades únicas, individuais, imutáveis, mas como entidades que partilham atributos com outras suas semelhantes. Os estudos tipológicos parecem indicar, pelo contrário, que é grande a sua capacidade de transformação e sobrevivência, a que acrescem os fenómenos de aquisição de novos significados e de refuncionalização – uma panela partida usada, mesmo que em parte, como material de construção num muro, desapareceu? É outro objecto? É duas coisas ao mesmo tempo?
Para além disso, acontece que conservar, isto é, “manter em bom estado, não deixando que se estrague ou altere; fazer conservação; fazer continuar ou continuar a existir; não deixar desaparecer; não perder ou não deixar de ter; manter-se ou manter em certo estado; não deixar envelhecer” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Editorial Verbo, 2001), é o que fazemos todos os dias, indivíduos e sociedades, tanto no plano da natureza como no da cultura, compelidos pelo instinto, pela emoção, pela razão, frequentemente por oposição ao seu contrário (mudar, reformar, substituir, perder), muitas vezes divididos, às vezes arrependidos. O primeiro objecto com que temos esta conflituosa relação conservar/destruir é com a nossa própria memória, mas tê-mo-la também com os afectos e com os objectos que nos rodeiam, desejados ou impostos, pois ora parecem essenciais à sobrevivência física, à afirmação da personalidade ou à perpetuação da nossa memória (o que vamos deixar para que nos recordem depois de morrermos), ora se nos afiguram inúteis, sem sentido, acabando mesmo no caixote do lixo uns, no sótão do esquecimento outros.
O que somos, o que nos identifica, o que temos por referência, sejam crenças, valores ou bens materiais, é resultado de opções conscientes ou inconscientes de permanência e perda feitas pelos grupos sociais que nos precederem, e é exactamente isso o que fazemos nós próprios hoje, relativamente aos vindouros. Neste sentido, o museu (e antes dele e com ele outras entidades) não é mais do que uma criação social para ordenar e organizar este processo de perda de memória, e nesse facto reside, não sendo niilista, a sua responsabilidade.
Enfim, e voltando ao princípio, sendo os objectos materialização de memória, testemunhos de vida, “pedaços da alma das pessoas”, como dizia recentemente Hugues de Varine (“Ecomuseus: que perspectivas, em Portugal, na Europa”, Seixal, 30 de Abril de 2004), não se vê como é que museus e objectos, mesmo que estes sejam apenas uma de entre as várias formas de registo de memória com que o museu trabalha, possam ser realidades dissociáveis e, portanto, que os museus possam alguma vez demitir-se da sua função de conservar. Se o fazem, cumprindo o código deontológico a que estão obrigados, ou não, é outra questão, de que não vamos agora ocupar-nos; nem tão-pouco do modo como, entre a quase sacralização de uns e a menorização, a roçar o desprezo, por outros, os objectos são considerados tanto pelos museus como pelo público – o alargamento do conceito de Património não destronou de todo a ideologia da obra prima, a sobrevivência da História de heróis.
Aproximámo-nos do “conservar porquê” e “o quê”, falta o “como”. Retomando a etimologia da palavra e a analogia com a experiência de cada um, relativamente aos objectos que lhe são queridos, na maior parte dos casos é muito simples – “não perder ou não deixar de ter”, quer dizer pôr em lugar seguro para evitar roubos ou algum acidente; “manter em certo estado; não deixar envelhecer”, quer dizer arrumar bem, não deixar que o sol queime, a humidade crie bolor e as traças, o “peixinho de prata” ou outros bichos comam… as nossas cartas de namoro, aquela fotografia única do casamento dos nossos avós, a primeira roupa do bebé… E ainda explicar à nossa criança que não pode andar sempre a mexer-lhe, muito menos com as mãos sujas, nem dobrar ou atirar com aquelas coisas ao chão. Mas pode também acontecer que manter algo a funcionar, em vez de guardar quieto, seja mesmo a melhor maneira de conservar, tirando até daí alguma vantagem prática – é o caso da velha e belíssima máquina de costura que herdámos do avô alfaiate, ainda que o mesmo já não se possa dizer do ferro de engomar a carvão!
Em qualquer caso, temos de ir olhando de vez em quando, para evitar algum desastre mais ou menos irrecuperável.
Os museus têm, noutra escala, estes mesmos problemas para resolver e os mesmos princípios a seguir, chamando-se a isso “conservação preventiva”, para a distinguir de procedimentos mais complexos (“conservação activa” ou “curativa”) e com outras implicações, mas por vezes a única maneira de “salvar” os objectos.
A condição simultânea de fonte, independentemente da sua natureza (matéria, técnica, função, idade, proveniência, valor material e simbólico, etc.) e de veículo de transmissão de informação (histórica, económica, antropológica, técnica, artística, etc.) é a razão que justifica a conservação de um objecto. Tornar clara e eficaz a mensagem de que é portador é, porém, um objectivo só conseguido quando nele/para ele confluem todas as demais funções museais, com destaque para a investigação e a comunicação, como é o caso dos exemplos que escolhemos para ilustrar este pequeno texto – um tecto de madeira policromada do século XVIII e… pão.
Ana Luísa Duarte
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